Amurabi Pereira de Oliveira
(Professor – IFPE/Doutorando – UFPE)
amurabi_cs@hotmail.com
RESUMO:
O presente tem como foco a construção de narrativas biográficas entre adeptos do movimento místico-esotérico denominado Vale do Amanhecer, que surgiu em Planaltina no final dos anos 60, agregando elementos do catolicismo, espiritismo, nova era e religiões afro-brasileiras. Nossa investigação visa compreender como os percursos biográficos se atrelam à eficácia simbólica dos processos rituais realizados pelos médiuns deste
movimento. Nossa análise das narrativas considerará o processo de deslocamento nos campos, tal como compreendido por Bourdieu, porém destacando o processo de performatividade dado a tais deslocamentos através da construção interacional do self.
Palvras-Chaves: Vale do Amanhecer; Biografias; Eficácia Simbólica.
INTRODUÇÃO
A imanencia do sagrado é um fenômeno que se faz presente nas mais diversas
culturas, seja através de uma forma institucionalizada de religião, ou mesmo através de
práticas e sistemas de crença difusos, de toda forma a relação entre o humano e uma outra
realidade, um outro mundo, é um dos acontecimentos mais presentes socialmente.
No Brasil temos desde o seu prnicípio uma realidade híbrida, sincrética, de modo que
autores como Andrade (2002) apontam que não seria o catolicismo o verdaeiro ethos religioso do Brasil, mas sim o sincretismo. Souza (1986) aponta que já no princípio da colonização encontramos fenômenos conhecidos por “santidades” que misturava elementos das culturas indígenas com outros presentes no catolicismo, em especial a perspectiva milenarista, que se atrela à escatologia judaico-cristã.
O que nos é relevante aqui é destacar este aspecto idiossincrático do campo religioso
brasileiro desde o seu princípio, uma vez que mesmo religiões “transplantadas” para cá ao se
depararem com uma nova realidade sociocultural reformulam-se, tanto que Bastide (1985)
aponta que o catolicismo existente no Brasil não é o mesmo daquele existente em Portugal.
Todo este cenário complexifica-se ainda mais com o advento da modernidade, e mais
ainda com a transnacionalização dos mais diversos bens culturais (ORTIZ, 2006), de modo
que o religioso não pode ser mais analisado da mesma forma. Além deste aspecto ligado ao
processo de transnacionalização devemos também destacar o cenário em que a
individualidade moderna emerge com todo o seu vigor, tanto que Pierucci (2004) aponta para
um cenário de destradicionalização do campo religioso brasileiro.
Em meio a tal contexto é que temos no Brasil a emersão do chamado movimento
Nova Era – NE – nos quais os mais diversos elementos oriundos tanto do esoterismo europeu, quanto da influência das religiões orientais buscarão configurar novas teodiceias (AMARAL, 2000). Claro que em tal movimento, que não chega mesmo a ser um movimento com um escopo definido, mas sim uma série de práticas difusas, que podem ou não serem religiosas, os mais diversos elementos são retirados de seu contexto original e utilizados de maneira performática, de acordo com um determinada finalidade e em determinado momento
(AMARAL, 1999). Claro que em princípio tal movimento atrela-se bem mais aos seus contextos originários, de modo que as referências iconográficas e culturais são muito mais assentadas no índio americano, ou no xamã siberiano que no pajé indígena brasileiro, por exemplo, (MAGNANI, 2006). O que não significa que isso se configure em um processo estático, muito pelo contrário, entendemos que a NE ao ingressar no Brasil ela desdobra-se, articula suas formulações a outros discursos e outras práticas já existentes no campo religioso brasileiro, de modo que em nosso entender teríamos um novo movimento dentro do próprio movimento, que denominamos de New Age Popular (OLIVEIRA, 2009).
Em nosso entender a New Age Popular configura-se justamente da possibilidade de
arranjar e rearranjar os discursos presentes na NE articulando-os com outros já presentes no
campo religioso brasileiro, através de complexos jogos simbólico, tanto de analogias quanto
de disputas, uma vez que temos um cenário em que as relações de poder não desaparecem.
Desse modo na New Age Popular os discursos e práticas da NE se hibridizam com aqueles
presentes nas expressões da religiosidade popular (OLIVEIRA, 2009), o que se faz sentir não
apenas através dos mais diversos Novos Movimentos Religiosos que surgem, como também
através de práticas difusas presentes em credos já institucionalizados.
É justamente inserido neste complexo cenário cultural que surge o Vale do Amanhecer
– VDA, um movimento místico religioso, que em cerca de 40 anos de existência já ergueu em
torno de 600 templos no Brasil e em mais 7 países. Buscaremos neste trabalho compreender
como se dá a dinâmica relativa aos processos de curas espirituais no VDA a partir da relação estabelecida entre os médiuns e os chamados pacientes, aqueles que procuram os serviços espirituais do VDA, e de como a biografia mediúnica é manipulada performaticamente de modo a estabelecer uma narrativa que implica sobre a cura no paciente.
VALE DO AMANHECER: BREVE APANHADO
O VDA tem sua história atrelado ao percurso de Neiva Chaves Zelaya, mais conhecida
por “Tia Neiva”, que vem a ser uma sergipana, nascida em Propriá em 1925, que migrou para Brasília durante o período de sua construção. Sua vida seguia um curso normal, até que aos 33 anos passa a ter visões, como não encontrou respostas dentro do catolicismo passou a peregrinar entre centros espíritas, de modo que conheceu Dona Nenê com quem veio a fundar em 1959 a União Espiritualista Seta Branca (Uesb), cujo nome homenageava a entidade que Tia Neiva alegava ter entrado em contato.
Esta entidade que Tia Neiva alegava ter entrado em contato denominava-se “Pai Seta
Branca”, que teria passado pela Terra várias vezes, vindo de um planeta distante chamado
Capela, teria posteriormente reencarnado como um Jaguar, depois como o São Francisco de
Assis, e por último como Seta Branca, que teria sido um índio tupinambá que teria vivido na
fronteira do Brasil com a Bolívia entre os séculos XVI e XVII (CAVALCANTE, 2000). Claro
que neste breve trajeto mitológico de tal entidade podemos já aí perceber o hibridismo
cultural no qual se assenta o VDA, havendo neste breve relato referências a OVNIs, santo
católico, índio caboclo, etc.
Posteriormente a fundadora vem a romper com D. Nenê e funda em 1969 em
Planaltina, cidade satélite de Brasília, o Vale do Amanhecer, cujo controle passa a ser
exercido tanto pela Tia Neiva quanto pelo seu marido o Mário Sassi, porém com a morte da
clarividente em 1985 passou a haver disputas de poder entre os herdeiros de Tia Neiva, de
modo que Mário Sassi saí do Vale e o controle passa a ser exercido por seus filhos. A partir
desse momento o Vale do Amanhecer passa a existir não apenas em Brasília, bem como
passam a habitar na região não apenas indivíduos ligados à doutrina, como também pessoas
oriundas de outras denominações, hoje encontra-se inclusive a presença da Universal do
Reino de Deus em meio ao VDA.
Notoriamente na construção do Universo do VDA encontramos um processo de
hibridização da realidade, ou de bricolagem como preferem alguns, de modo que encontramos imagens de ciganas, índios, caboclos, pretos velhos, alienigenas, Dr. Frtiz, dentre outras que lembram hindus, egípcios, maias etc. A formulação desse universo incluí não apenas uma simples sobreposição de elementos culturais diversos como também a ressignificação dos mesmos, de modo a formar uma malha simbólica complexa, este processo gera uma nova prática original capaz de gerar sentido às identidades dos sujeitos envolvidos.
Em sua dinâmica o VDA liga-se essencialmente ao processo de cura espiritual, os
adeptos ofertam serviços que visam ter uma eficácia sobre o problema daquele freqüentador
que procura o templo, chamado de paciente. Entre os adeptos os médiuns se dividem em duas classes: aparás e doutrinadores, cabe aos primeiros o exercício de incorporação e aos segundo mediar a relação, bem como demais atividades existentes nos rituais do VDA. É com base nesta dinâmica que buscaremos compreender como se dá os processos de cura neste movimento, como este se imbrica aos percurso biográficos e ao processo performático
vivenciado intersubjetivamente entre médium e paciente.
MÉDIUM, PACIENTE E RITUAL: A CONSTRUÇÃO DA INTERSUBJETIVIDADE
O VDA, assim como outros movimentos iniciáticos, possuí uma complexa hierarquia,
bem como uma série de rituais de passagem que visam introduzir o adepto na doutrina, é
através destes rituais que o iniciado vai conhecendo os preceitos existentes, bem como
desenvolve sua capacidade mediúnica, buscando identificar se sua vocação atrela-se à
incorporação ou à doutrinação, esta última também acaba se ligando com as entidades
espirituais, na mediunidade em que, assim como no espiritismo kardecista há a crença de que os espíritos chamados de obsessores precisam ser doutrinados para evoluir. Esta incursão pela doutrina leva também ao uso de indumentárias específicas, que dependendo da falange ao que ele se vincule, que vem a ser um grupo de entidades espirituais com características específicas, implicará na utilização de símbolos diversos, no caso das mulheres este fenômeno se mostra mais claro, já que possuem 19 possibilidades de falanges, ao passo que os homens só podem se vincular a duas: magos ou príncipes.
Em princípio toda a atividade desenvolvida no VDA é entendida enquanto um
trabalho de caridade, uma vez que buscam ajudar tanto os frequentadores, quantos os adeptos e mesmo os espíritos obesessores. Há, neste sentido, uma oferta de bens espirituais, que como nos alerta Bourdieu (2004) são ofertados em disputa com os demais bens espirituais já oferecidos pelas religiões institucionalizadas, de modo que se colocam numa cenário de disputas simbólicas por legitimidade. Neste sentido de encarar as atividades realizadas enquanto um trabalho de caridade o VDA aproxima-se do espiritismo kardecista, cuja dinâmica central está ligada a este tipo de trabalho, entendido enquanto fundamental para a evolução espiritual (CAVALCANTI, 1983).
Ainda que possamos falar de freqüentadores que vão aos templos do VDA há anos, e
que mesmo assim não se declaram adeptos, em princípio quando um indivíduo busca os
serviços espirituais deste movimento vão encontrar um estranho, e no caso dos três rituais
mais recorrentes: o trono, a cura e o passe, encontrarão um médium incorporado, num estado
de semi-consciência normalmente.
No ritual do trono o médium incorpora um preto-velho ou um caboclo. Neste momento o médium que incorpora senta-se o doutrinador media a relação, o paciente senta-se ao lado,realiza a saudação: “Salve Deus”, abre as mãos fala o nome completo e diz seus problemas, o apará passa a estalar os dedos e saudar uma série de entidades. Notoriamente o processo de incorporação pressupõem uma performatividade que torne o momento real, que sejam articulados signos reconhecíveis enquanto simbolicamente eficazes tanto por parte do médium, quanto do paciente. Estes signos não encontram-se apenas no plano linguístico, como também visual e sonoro, por isso que cada contorcer da musculatura da face de um médium, assim como a modificação vocal leva a um processo de construção do ritual, assim como o suor que ca do seu rosto, o cansaço ao final da
incorporação.
No ritual da cura o médium incorpora normalmente alguma entidade que se diz
“Doutor”, o que volta a lembrar o espiritismo kardecista, porém ao contrário do primeiro
ritual este é marcado por uma incorporação muito mais controlada, a face do médium se
contorce menos, sua voz é mais firme, de modo que o controle emocional geral um novo
momento ritual, que também é marcado pela ruptura de espaço já que cada momento ocorre
num espaço físico distinto. As mãos do médium passam rente ao corpo do paciente que neste momento encontra-se deitado sobre uma cama vermelha, o que se assemelha bastante ao movimento realizado pelo Reike.
Já no ritual no passe o paciente ingere um pouco de sal e entra num circuito em que á
vários médiuns incorporados, apenas por preto-velhos, neste momento ele deve passar por no mínimo três deles, estender as mãos e abri-las, de modo que o médium incorporado estale
seus dedos e assim como no primeiro ritual salde uma série de entidades, desse modo dando as bençãos ao paciente que ao sair deve ungir a testa com óleo.
Claro que há uma série de rituais existentes no VDA, alguns mais complexos como o
da estrela Candente, porém destacamos estes três por se fazerem mais presentes, ainda que em templos menores. Como cada ritual demanda um espaço físico diferenciado o número de
rituais que um templo do VDA pode ofertar liga-se diretamente a estrutura física existente.
É em meio a este circuito de experimentações que se faz possível a construção de
narrativas que propiciam a cura. Claro que há uma dependência também de que aquele que
oferta tal bem espiritual manipule corretamente tais elementos simbólicos, e que haja uma
crença por parte do médium, do paciente e da coletividade de que há uma eficácia simbólica
por parte deste ritual (LEVI-STRAUSS, 2008). Mas isto não nos responde completamente
como ocorre o processo não apenas de cura, como também de construção da doença e da
saúde.
Autores como Rabelo (1994) nos ajudam a compreender tal fenômeno ao situar a
saúde e a doença no processo de intersubjetividade criada entre paciente e curador, de modo que tais elementos não poderiam ser compreendidos como elementos já dados simplesmente, mas sim enquanto construções formuladas a partir de uma negociação da realidade.
Entendemos que tal intersubjetividade só pode ser constituída a partir do momento em
que o médium lança mão da constituição de uma narrativa, que envolve o plano visual,
lingüístico, sonoro, performático como um todo, em que a negociação da realidade só será
possível a partir da articulação com os elementos constituídos a partir das disputas postas nos
múltiplos campos. De modo que mesmo no plano microssocial de interação e de
intersubjetividade temos aí as relações de poder postas que dinamizam as práticas dos
sujeitos. Mas por outro lado temos que não apenas isso também nos responde a nossa questão,
já que temos que nos confrontar com a idéia de que além de se circunscrever socialmente esta
dinâmica também se circunscreve espacial e temporalmente, de modo que a idéia de tempo
extraordinário apontado por DaMatta (1997) nos é necessária para a compreensão desta
realidade, uma vez que é neste espaço temporal e também espacial que a negociação de
sentido e a criação desta carga simbólica capaz de gerar a cura se faz possível.
O paciente deve se constituir como paciente, assim como o médium enquanto tal, de
modo que os papéis estabelecidos ao interagirem mediados por símbolos, que inclui aí a
própria linguagem, possa produzir novos elementos, quais sejam: as representações sobre
saúde, doença e cura. Tais elementos, como já foi posto, não possuem existência per se, mas
sim em meio a este processo de interação. Buscaremos neste momento compreender como
estes mediadores simbólicos são constituídos, de modo a estabelecer uma interpretação da
negociação performática da realidade.
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